Mas o núcleo da revelação cristã é que Deus não é Poder infinito enquanto dominação, mas Força infinita de criar e de amar
(Anselmo Borges, en DN).- Na base das religiões está a experiência do Sagrado, de Deus, de quem se espera salvação para todos. Mas, depois, é o que se sabe: há uma brutal «história criminosa» das religiões, devendo, porém, acrescentar-se que essa história se estende ao ateísmo, que cai no mesmo paradoxo: uma das suas razões é a tolerância, mas, depois, foi também o horror – basta citar o nazismo e o comunismo e o seu ateísmo. E isto dá que pensar.
Como faz notar o teólogo J. I. González Faus, «a violência não é própria da experiência crente: é, sim, intrínseca ao ser humano», por necessidade de autodefesa e de sobrevivência, sobretudo por causa da sua dimensão racional e da pretensão de universalidade, intrínseca à razão: «A maior parte das violências impostas por alguns contra outros apenas pretendiam, em teoria, fazê-los «entrar na razão» ou «aceitar a verdade».» Nas religiões, lá está o alegado encontro exclusivo com a verdade e a necessidade de impô-la, precisamente para defender a verdade e Deus. Foi isso que aconteceu também com o comunismo, que, segundo uma expressão de Karl Marx, «é a resolução do enigma da história e sabe que o é».
O ser humano é finito, carente e mortal. Quando julga encontrar a verdade, a verdade única e toda, encontra o bálsamo da existência: o da verdade salvadora. Como precisa de segurança, de reconhecimento, de superar a carência, a finitude, a mortalidade, não tolera a dúvida, a diversidade, e vai impor «a verdade», justificando-se, nesse propósito, a agressão e a violência.
O pensamento total desemboca em totalitarismo. Por isso é que quem julga deter a verdade única, toda, não pode ter do seu lado o exército e a polícia. Para não acontecerem as tragédias da barbárie. Quando a Igreja pensou deter a verdade toda e tinha do seu lado o poder, surgiu a Inquisição. Com o «socialismo real» e a pretensa solução do enigma da história, foi o goulag. Lá está a perversidade: a alegada posse da verdade total também serve para justificar interesses outros que não são os da verdade e que têm que ver com a dominação, o poder, que quer sempre mais poder.
É mesmo isso: levamos connosco a ilusão de que, se fôssemos omnipotentes, com o poder todo, mataríamos a morte. Sempre a ilusão de ser Deus, concebido como omnipotência, no sentido de domínio total. Mas o núcleo da revelação cristã é que Deus não é Poder infinito enquanto dominação, mas Força infinita de criar e de amar. No entanto, no Credo, mesmo no Credo, não se diz explicitamente a única «definição» de Deus no Novo Testamento: «Deus é amor incondicional.» E ainda funciona um «Deus dos exércitos» e, segundo a tradição, há um bispo das Forças Armadas e Segurança, mas não há um bispo da Cultura, da Saúde e da Segurança Social.
A questão não é a experiência religiosa mística, pela sua própria natureza, antiviolenta, felicitante e que traz salvação. A questão é o que as religiões fizeram e fazem de Deus.
No dizer do filósofo Frédéric Lenoir, isto vê-se concretamente nos monoteísmos, por se julgarem detentores da «verdade única que lhes foi dada por Deus». Deve juntar-se a tal atracção do poder, que torna as religiões violentas. «O caso do judaísmo é típico, pois durante mais de dois mil e quinhentos anos foi uma minoria politicamente dominada ou perseguida.» E lá está ainda hoje o terrível fanatismo. De qualquer modo, Javé é um Deus muito violento. O cristianismo é a religião do amor e começou por ser pacífico e violentamente perseguido. As coisas mudaram desde o século IV, com Constantino, e sobretudo a partir de 380, ao tornar-se religião de Estado, numa união religioso-política.
De religião perseguida, começou a tornar-se perseguidora e implacável para com os infiéis não cristãos e os cristãos heréticos. Santo Agostinho já fala em «perseguição justa». Depois, são as cruzadas, fazendo o papa Urbano II apelo à guerra santa: «Deus o quer.» E a «santa inquisição». Santo Tomás de Aquino escreveu: «Os hereges merecem ser suprimidos do mundo pela morte.» E o ódio aos judeus. E a brutalidade da conquista da América e do tráfico de escravos. O Alcorão prega a guerra santa contra os infiéis: «Profeta, combate contra os infiéis e sê duro com eles» (9, 73); «Infundirei o terror nos corações dos que não acreditem. Cortai-lhes o pescoço» (8, 12). E Lenoir lembra que Maomé foi ele próprio «ao mesmo tempo um chefe espiritual e político, e um guerreiro». Participou em 60 batalhas.
A história mostra que também o hinduísmo e o budismo não estão imunes à violência, por vezes brutal, exercida até por monges.
O casamento das religiões com o poder e a política corrompe-as. Aí está porque, para lá da urgência do diálogo inter-religioso, condições essenciais para a paz são a leitura histórico-crítica dos textos sagrados e a laicidade do Estado, com a separação da(s) Igreja(s) e do Estado e o respeito pelos direitos humanos.
* Padre e professor de Filosofia