Anselmo Borges

Jesus e a revolução judeo-cristã

"É preciso ser consequente"

Jesus e a revolução judeo-cristã
Anselmo Borges

Contra a eternidade impessoal proposta pelas filosofias do cosmos, o cristianismo promete que "nunca morreremos verdadeiramente, que nunca estaremos sós, que seremos sempre amados, e que reencontraremos após a morte os seres que nos são queridos"

(Anselmo Borges).- 1 As sabedorias filosóficas antigas, orientais e da Grécia, elaboraram «espiritualidades» em ordem a uma vida boa, sem passar nem por Deus nem pela fé. Foi frente a essas sabedorias que o cristianismo, a partir da sua herança judaica, ergueu uma orientação nova, religiosa, de salvação, enraizada na fé num Deus pessoal, transcendente e criador.

Essa nova representação foi «tão atraente e prometedora» que triunfou durante séculos sobretudo na Europa. Esta é a tese desenvolvida pelo filósofo não crente Luc Ferry, antigo ministro da Educação em França.

O que é facto é que, «entre o século V e o século XVII, o Ocidente foi essencialmente cristão, cultural e filosoficamente cristão, de tal modo que a filosofia moderna, a partir do século XVII, mesmo quando foi crítica em relação às religiões, até resolutamente ateia, não deixou de ser marcada de modo decisivo por esta herança religiosa». O fundo de cultura judeo-cristã é omnipresente e por isso «é indispensável» que mesmo os não crentes se interessem e captem os traços fundamentais dessa cultura, para «se compreenderem a si mesmos e compreenderem o mundo dentro do qual vivemos», escreve Luc Ferry.

A pergunta é: «Que havia de tão profundo, de tão sedutor, atraente e fascinante na mensagem de Jesus (e concretamente no que se refere à morte que injecta sempre a angústia no coração dos homens), para ter-se arrogado com tanta força o monopólio da definição legítima da salvação e da vida boa, em detrimento das espiritualidades filosóficas que formavam o essencial das sabedorias antigas?»

2 «O primeiro e mais importante ponto de ruptura» com as grandes cosmologias e sabedorias antigas «situa-se na personificação do divino». O cosmos, o Logos eram divinos, o divino era o cosmos, o Logos. Ora, logo no início do Evangelho segundo São João, lemos que «no princípio era o Logos, e o Logos fez-se carne». O Logos é uma pessoa. Deus encarnou em Jesus Cristo. O divino já não se confunde com o cosmos, o Universo anónimo, mas é uma pessoa. Já não estamos dentro de uma ordem impessoal e anónima, e isso «implica uma mudança radical na relação com Deus». Aliás, foi com o cristianismo que se deu a descoberta da pessoa e a afirmação de que todos os seres humanos são pessoas, o que não acontecia nem na Grécia nem em Roma.

Por outro lado, a nova atitude do homem perante o Deus pessoal só pode ser a da confiança, da fé (fides, donde vem fé e confiança). A entrega confiada a Cristo e a Deus é que é decisiva. Daqui provém uma nova relação entre fé e razão: crer para compreender, compreender para crer.

3 O nascimento da moral cristã constituiu uma ruptura radical com as éticas aristocráticas gregas. «Primeiro passo para a democracia moderna, para os direitos do homem e para a ideia de igualdade, a moral cristã faz literalmente voar em estilhaços os princípios fundamentais das grandes éticas aristocráticas gregas. Estamos perante uma revolução de uma amplidão abissal, verdadeiramente a única revolução moral realmente importante desde há dois mil anos: crentes ou não, vivemos ainda assentes em valores elaborados pelo cristianismo». Aliás, «não é por acaso que a democracia moderna foi instaurada num mundo culturalmente cristão e em mais lado nenhum».

Isto vê-se bem na parábola dos talentos. O terceiro servo, com um talento apenas, teve medo e enterrou-o. Ora, «o medo é o contrário da confiança, da fé» e, por isso, o senhor insulta-o. Contra a visão moral aristocrática, «a dignidade de um ser não depende dos talentos recebidos à nascença, mas do que se faz deles, não da natureza e dos dons naturais, mas da liberdade e da vontade, sejam quais forem os dons à partida».

Há desigualdade por natureza, mas «é o trabalho que valoriza o homem, não a natureza». Isto é uma revolução, pois «introduz a ideia moderna de igualdade entendida no sentido da igual dignidade dos seres, independentemente dos talentos naturais». Como teorizará Kant, não é a força, a inteligência, a beleza, etc. que são fonte de moralidade, pois pode-se usar esses dons na direcção do bem ou do mal; por isso, é a liberdade, a vontade boa, que constitui a moralidade; a virtude depende do dever-ser e não das disposições naturais.

4 Jesus revela Deus como amor incondicional, que, portanto, não abandona os seus nem sequer na morte. Deus é um Deus de vivos e não de mortos. Contra a eternidade impessoal proposta pelas filosofias do cosmos, o cristianismo promete que «nunca morreremos verdadeiramente, que nunca estaremos sós, que seremos sempre amados, e que reencontraremos após a morte os seres que nos são queridos».

Sem Deus pessoal e salvador, na morte só resta a dissolução no Todo impessoal e anónimo. «Na medida em que se acredita, a promessa de Jesus é incomparável, infinitamente mais exaltante e mais sedutora do que a de ser um grão de pó cósmico, cego e anónimo, para a eternidade.» É cada um que é pessoalmente convocado e que pessoalmente tem de decidir. «O que confere à promessa de imortalidade uma aura propriamente inigualável» é que está em conexão com «uma filosofia do amor de uma rara profundidade. É pelo amor que somos salvos da morte». Deus é amor e o amor é mais forte do que a morte.

5 Em A Gaia Ciência, Nietzsche pôs um louco a proclamar a morte de Deus: «Para onde foi Deus? Matámo-lo. Nós somos os seus assassinos.» E este foi o maior feito da humanidade. Mas agora é o niilismo. E «que significa o niilismo?», pergunta Nietzsche, para responder: «Que os valores mais altos perdem o seu valor.» Por isso, continua o louco: «Para onde nos leva a nossa corrida? Há ainda um em cima e um em baixo? Não andamos à deriva através de um nada infinito? Deus morreu. Como nos consolaremos?»

É preciso ser consequente: se tudo caminha para o nada e se afunda no nada, já tudo é nada. E o que é que verdadeiramente vale?

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Autor

José Manuel Vidal

Periodista y teólogo, es conocido por su labor de información sobre la Iglesia Católica. Dirige Religión Digital.

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