"Pedro é gente boa"

Sentinela da Esperança

"Um homem livre, palavra livre, espírito livre"

Sentinela da Esperança
Pedro Casaldáliga

Pedro é a palavra livre, o gesto em rebeldia, a ousadia que bebe na fonte do Espírito, que é vento e fogo e arrebenta estruturas e correntes

(Paulo Gabriel Blanco osa).- «Deus é gente boa». Pedro conta que ouviu esta expressão de um sertanejo analfabeto e intuiu que era uma afirmação sábia, humana, profunda.

Com a experiência de mais de 20 anos vivendo dia-a-dia com Pedro, partilhando sonhos, decepções, projetos, utopias, lutas e esperanças, eu afirmo: Pedro é gente boa, no mais pleno sentido da palavra. Gente fina, diz o povo, homem humanizado.
No livro «Tierra Nuestra, Libertad», Pedro oferece seu auto-retrato, boa introdução para aprofundar na dimensão humana de Pedro, objetivo deste trabalho.

Instinto de solidão.
Vocação de companhia.
Mercadores e tratantes.
Pastores e «pagesia».

A palavra da minha mãe,
Nervosamente incisiva.
Os silêncios de meu pai
E suas esperas sofridas.

A guerra, porque «é a guerra».
A paz, porque é paz vencida.
E o chamado de Deus
Tão precoce como a vida.

Auto-retrato, do livro»Tierra Nuestra, Libertad».

Pedro livre com alma de missionário

«Se me batizares outra vez, um dia
com a água do pranto e da memória,
com o fogo da morte e da glória,
diz a Deus e ao mundo
que me puseste o nome
de Pedro Liberdade».

O nome novo, do livro «Tierra Nuestra, Libertad».

Pedro é, antes de mais nada, um homem livre. Pedro Liberdade seria seu nome se ele o pudesse escolher e se de novo sua mãe o batizasse. Livre diante das instituições, sejam elas políticas ou religiosas; livre diante das pessoas, dos grupos e das ideologias. É a liberdade que nasce de uma vida vivida na mais pura verdade. «A verdade vos libertará», diz Jesus no Evangelho de São João.

Pedro é a palavra livre, o gesto em rebeldia, a ousadia que bebe na fonte do Espírito, que é vento e fogo e arrebenta estruturas e correntes.

Esse espírito livre é fruto de uma longa e sofrida luta, é conquista, próprio de personalidades humanamente adultas, e é por isso que fascina e atrai.
Jovem sacerdote ainda, na Espanha da pós-guerra, na década de 50, ele já tinha um espírito independente e irrequieto. Com alma de missionário ele dava passos concretos para fazer que a Igreja assumisse o mundo dos operários e dos migrantes.

Comunicador nato, escrevia em revistas e falava no rádio. Criou com outros claretianos a revista «Íris de paz» e dessa época ele recorda que passava a noite escrevendo programas para o rádio e que apenas dormia três ou quatro horas.

Essa inquietude o levou a viver alguns meses na África e, posteriormente, o trouxe para o Brasil. E chegando aqui, como Hernán Cortés, queimou as naves para não haver caminho de volta e nunca mais regressou a sua terra natal.

Prova dessa liberdade de espírito é, entre muitas outras coisas, a carta escrita a João Paulo II em 1986, num momento crítico. Essa carta passará à história como um dos documentos maiores da Igreja do nosso tempo.

«Há muito tempo queria escrever ao senhor esta carta e há muito a venho pensando e colocando em oração.

Gostaria que fosse um colóquio fraterno, na sinceridade humana e na liberdade de espírito, como também um gesto de serviço de um bispo para com o bispo de Roma, que é Pedro para minha fé, para a minha co-responsabilidade eclesial e para a minha colegialidade apostólica.»

«Não tome como impertinência a alusão que farei a temas, situações e práticas secularmente controvertidas na Igreja ou até contestadas, sobretudo hoje, quando o espírito crítico e o pluralismo perpassam também fortemente a vida eclesiástica.

Abordar novamente esses assuntos incômodos, falando com o Papa, é para mim expressar a co-responsabilidade em relação à voz de milhões de católicos, de muitos bispos também, e de irmãos não católicos, evangélicos, de outras religiões, humanos. Como bispo da Igreja católica, posso e devo dar à nossa Igreja essa contribuição. Pensar em voz alta a minha fé e exercer, com liberdade de família, o múnus da colegialidade co-responsável. Calar, deixar correr, com certo fatalismo, a força de estruturas seculares seria bem mais cômodo. Não penso, porém, que fosse mais cristão, nem sequer mais humano.

Assim como falando, exigindo reformas, tomando posições novas, pode-se causar «escândalo» a irmãos que vivem em situações mais tranqüilas ou menos críticas, assim também podemos causar «escândalo» em muitos irmãos, situados em outros contextos sociais ou culturais, mais abertos à crítica e à mudança da Igreja, sempre uma e «semper renovanda» quando calamos ou aceitamos a rotina ou tomamos medidas unívocas, indiscriminadamente.»

E a seguir enumera e dá sua visão divergente de Roma sobre temas conflitivos: compromisso social e político da Igreja, Teologia da Libertação, burocracia da cúria romana, celibato obrigatório para o clero, a marginalização da mulher na Igreja, a viagem de Pedro a Nicarágua na época do governo sandinista, entre outros. Toda a carta transmite essa liberdade de espírito e exige um diálogo adulto, de igual para igual, sem prepotência nem submissão.

Ninguém manipula a Pedro. Ele é ele, e porque é ele antes de mais nada, sua relação com as coisas e as pessoas é de extremo respeito, delicadeza e liberdade. Trata a todos e todas exatamente igual, se entrega inteiro em cada encontro e quem já se relacionou com ele sai convicto de que foi tratado como alguém muito especial e único. Muitas vezes o vi interromper uma conversa ou reunião com as chamadas «pessoas importantes» para acolher uma mulher sertaneja que entrava em casa para beber um copo d’água, ou servir um cafezinho ao Nascimento, rapaz portador de necessidades especiais, e que todos os dias passa por casa. Pedro não se deixa enganar pelas aparências externas, se interessa por todos e por tudo, e se é para dar preferência para alguém, os primeiros são sempre os excluídos da sociedade.
É claro que um homem livre assim gera rupturas, provoca conflitos, se torna incômodo aos que alimentam estruturas de poder ou vivem uma vida cômoda ou encima do muro.

A personalidade de Pedro desperta a adesão total, a admiração sincera ou a rejeição mais absoluta. Não há termo médio. Ninguém fica indiferente diante dele, ou se lhe ama, ou se lhe rejeita. Já vi jornais difamando-o na maior baixaria, já vi muros e igrejas da região pichados com palavras ofensivas contra ele, já vi latifundiários dizendo que celebrariam com champanhe e foguetes a sua morte. Ao mesmo tempo, sei que o povo o vê como guia e defensor, e se, na época da repressão, as pessoas humildes não se atreviam, por medo, a dizer publicamente que estavam do seu lado, é certo que iam na sua casa e lhe declaravam apoio e solidariedade.

Hoje, é preciso dizê-lo porque é assim, a personalidade de Pedro acabou se impondo como figura maior, e se anos atrás, dividia as opiniões a favor e contra, agora, só alguém muito perverso e desequilibrado ousa espalhar mentiras que o povo desaprova.

Assim acontece com as pessoas livres.

Ser livre também diante da lentidão do tempo tem sido uma dura e longa conquista. Tempo e espaço no sertão e na consciência popular têm outro ritmo, e isto às vezes exaspera. Respeitar o ritmo do povo até conquistar as mudanças desejadas demora e custa.

«Saber esperar, sabendo
que o tempo não existe mais.
Nem o correio nem a imprensa têm aqui caixa postal.
O sol é de ontem, de sempre
e um dia é mais um dia.
Amanhã será outro dia
e arroz não nos faltará.
Despertaremos cansados
com vontade de sentar
mas com a espera nas costas
e nos tocará esperar
outro dia, todo dia
para aprender a esperar.»

Saber esperar, do livro»Tierra Nuestra, Libertad».

Pés no chão, alma nas estrelas, realista e utópico, apaixonado sempre

Pedro é catalão e isto diz muito. Há uma expressão feliz na língua catalã para definir a alma desse povo: «El seny i la rauxa».

«El seny» é o bom senso, a dimensão prática, realista, objetiva da vida.
Pedro, talvez isto surpreenda a quem não o conhece de perto, é extremamente organizado, objetivo, disciplinado. Enxerga logo a realidade e sintetiza com uma lucidez assombrosa situações complexas e difíceis. É alguém que ilumina, gosta da clareza, da palavra exata, vai diretamente ao coração do problema. Essa clareza, a persegue também no poema, e é por isso que admira tanto a poesia de Antonio Machado, o verso despido e limpo onde nada falta e nada sobra.
Simultaneamente, é um homem guiado pela paixão, pelo sonho, a utopia. Isso é a «rauxa».

É um orador capaz de mobilizar multidões com a palavra em chamas, o visionário que adivinha o futuro, e se não é como ele desejaria que fosse, luta para que o seja. É o poeta, o místico, o artista. Ele e capaz de acender em cada pessoa a chama adormecida e possibilita que surja, límpido, o melhor que há em nós. Ele nos redime da mediocridade.

Geralmente as pessoas são uma ou outra coisa, prevalece nelas o «seny» ou a «rauxa». Pedro é as duas coisas simultaneamente: realista e visionário. É um sonhador que sabe construir mediações concretas para atingir o fim. Excelente articulador, sabe que os sonhos têm que ser organizados para se tornarem realidade. Não fica nas nuvens, tem os pés no chão e a cabeça nas estrelas.

«Palito elétrico», foi esse o codinome dado a ele pelo Exército durante a repressão. Acertou o Exército no nome. Magrinho e sempre aceso, Pedro traz mil projetos na cabeça e é capaz de aglutinar e mobilizar o mundo para as causas que dão sentido à sua vida. Sempre independente, ele se adianta aos acontecimentos. Quando, em 1971, ninguém na Amazônia falava de «trabalho escravo» ou «conflitos de terra», ele escreveu a Carta Pastoral: «Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social.» Com faro de repórter, ele está onde o povo está. Falou da causa negra na Missa dos Quilombos; chamou a atenção para a problemática indígena com a Missa da Terra Sem Males; e, há mais de quinze anos, na Agenda Latino-americana, coloca em pauta os problemas mais urgentes da atualidade. Desta forma, ele está presente nos mais diversos campos do saber e da cultura.

Na origem da CPT (Comissão Pastoral da Terra), do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), das causas continentais e tantos outros projetos nacionais e internacionais, hoje patrimônio de muitos e muitas, está presente o dedo de Pedro.

Homem de fé, homem orante

«Minha força e meu fracasso és Tu.
Minha herança e minha pobreza.
Tu minha justiça, Jesús!
Minha guerra e minha paz
minha livre liberdade.
Minha morte e minha vida,
Tu, palavra dos meus gritos,
silencio de minha espera,
testemunha dos meus sonhos,
cruz de minha cruz.
Causa de minha amargura,
perdão do meu egoísmo,
crime do meu processo,
juiz do meu pobre pranto,
razão de minha esperança.
Tu!
Minha terra prometida és Tu!
Páscoa de minha Páscoa,
minha glória para sempre,
Senhor Jesus.»

Senhor Jesus, do livro»Tierra Nuestra, Libertad».

O contexto deste poema foi o inquérito aberto pelo governo da ditadura militar acusando-o de subversivo. O título do poema é «Senhor Jesus».

É a partir dessa fé no Deus da vida, feito humano em Jesus de Nazaré, que ele age e foi essa fé a que lhe possibilitou não ser destruído nas horas mais amargas, nas noites mais escuras pelas que ele e a equipe pastoral passaram.

Sabe concretizar em posições políticas a fé que o move.

Pedro sempre radicalizou nas opções. Essa radicalidade longe de torná-lo sectário ou dogmático, o universaliza. Ele ultrapassa as fronteiras eclesiais e cria um diálogo fecundo com os grupos e organizações que na sociedade sonham um outro mundo possível. Na verdade, é a radicalidade da entrega da vida às causas verdadeiras, que tem sua origem na fé e no seguimento de Jesus. Pedro é um homem religioso, no verdadeiro sentido da palavra.

Essa coerência entre o pensar e o agir lhe dá uma autoridade moral inquestionável.

Nunca o vi usar o argumento de autoridade para defender suas posições, ele se impõe por si mesmo, pela clareza de idéias e pelo testemunho de vida.

É capaz de ser como quer ser, enquanto que a maioria de nós tropeçamos nas incoerências cotidianas.

Essa estrutura pessoal faz que se torne referência, símbolo, modelo, porque encarna em si os desejos melhores de todos nós.

«Me chamarão subversivo
e eu lhes direi: o sou.
Por meu povo em luta vivo
com meu povo em marcha vou.
Tenho fé de guerrilheiro
e amor de revolução.
E entre Evangelho e canção
sofro e digo o que quero.
Se escandalizo, primeiro
queimei meu próprio coração
no fogo desta paixão
cruz de Seu mesmo madeiro.»

Canção da foice e o feixe, do livro»Tierra Nuestra, Libertad».

Homem de oração, pára várias vezes ao dia para orar e sempre faz sua leitura espiritual.

É daí, da fé em Jesus de Nazaré, da oração cotidiana, que lhe vem a luz e a força. Ignorar isto é não conhecer a Pedro.

Extremamente bem-humorado, gozador até

O humor, ouvi dizer um dia a uma jornalista que o entrevistava, é sinal de inteligência. Admirava-se ela das brincadeiras e gozações que o próprio Pedro fazia de si mesmo. «Mas o senhor é extremamente gozador!», ela exclamou.

Bom humor é o outro nome da alegria, que é outro dos frutos do Espírito.
Que Pedro tem uma inteligência extraordinária, não é segredo para ninguém. É sagaz, tem a palavra certa na hora, desmonta qualquer um com suas saídas geniais e quando provocado, fica melhor ainda. Seu bom humor contagia e cria ao seu redor um ambiente leve e feliz. Com o passar dos anos, como o vinho velho, esse humor gozador e perspicaz, vai ser tornando mais fino, mais livre e mais gostoso. Ri até de si mesmo, que é uma forma de contrastar a vontade de perfeição, que busca em tudo o que faz.

Agora, já aposentado, «ex-emérito» como o definiu certo repórter pouco familiarizado com o linguajar eclesiástico, e que ele sempre cita como gozação, se define a si mesmo como «cavalo velho deitado ao sol da tarde olhando as nuvens passar e vendo os poldros pastarem no campo». E ri!

O humor sabe relativizar os acontecimentos e mesmo levando a vida muito a sério, consegue não se angustiar demais diante dos conflitos. «Nunca perdi a paz», diz Pedro, «nunca quis mal a ninguém», e provoca aos medrosos com as frases de efeito que só ele sabe fazer: «O inferno não existe.», diz, e levanta os braços como se abraçasse o mundo. E quando as coisas se complicam, lembra uma frase que não sabe muito bem a origem dela, mas que diz mais ou menos assim: «somos soldados derrotados de uma causa invencível!», ou aquela outra: «de derrota em derrota, até a vitória final.», e toca o barco para frente.

Sou testemunha de que conflito nenhum lhe faz perder o sono. Dorme, como diz Sancho Panza no Quixote, «a pierna suelta».

Agora, com Parkinson, o corpo falha, mas mesmo limitado, assume a velhice e as doenças com uma alegria invejável: «irmão Parkinson», diz ele, e enfrenta a rotina diária, limitado apenas a viver dentro de casa, em prisão domiciliar, como ele diz, com uma serenidade que transborda bondade e contagia.

No mês de outubro último, sem ele saber que eu estava escrevendo este texto (ou será que sabia?), brincando me falou: «Quando você escrever sobre o bispo velho, podes dizer que agora me colocam entre Bolívar, Oscar Romero e Che Guevara.» «Como é isso?», lhe perguntei. «Parece que houve, em Caracas, me disse, um encontro das esquerdas latino-americanas e nos citaram aos quatro como modelos para o futuro dos nossos povos.» E, sem dar maior importância ao fato, olhou o termômetro e comentou: «Estamos a 38 graus à sombra.» E continuou abrindo a correspondência.

Atualmente, tem muito de vovô.

Austero, pobre

«Não ter nada,
não levar nada,
não poder nada,
não pedir nada.
E de passagem,
não matar nada,
não calar nada.»

Pobreza evangélica, do livro»Tierra Nuestra, Libertad».

Pedro é, por opção de vida, pobre. Austero e pobre, às vezes até exigente demais consigo mesmo.

A pobreza real em que exerceu durante mais de trinta anos seu ministério episcopal é fruto de uma conquista nem sempre fácil. Acomodar-se é o comum, fazer concessões, aceitar privilégios é o normal. Houve situações na equipe pastoral nas quais Pedro teve que forçar a barra para não abrir mão de uma vida vivida na pobreza e que era e é coerência de vida.

Pobreza é também meios pobres, casa humilde, roupa e comida simples. Sempre andou de ônibus, tanto na região da Prelazia como nas inúmeras viagens pelo Brasil afora. Dias a fio nos ônibus. Conta ele que às vezes os colegas bispos lhe diziam: «Mas Pedro, você perde muito tempo nessas viagens intermináveis.» Ao que ele respondia: «Esse é o tempo que eu ganho, porque é quando sinto a realidade dura do povo e tenho contato com as pessoas no seu sofrimento diário».

E diz que foi uma criança quem lhe ajudou a entender melhor o que deve ser uma vida de austeridade e testemunho.

Chegou ele um dia, na hora do almoço, na casa de uma família sertaneja. O marido, liderança sindical, estava preso junto com alguns agentes de pastoral. Era a época da repressão militar. Quando a mulher o viu chegando, exclamou aflita: «Ah, Dom Pedro, hoje só temos para o almoço arroz e banana, se soubéssemos que o senhor vinha, preparávamos outra coisa!». A filha, de cinco ou seis anos, disse: «Mãe, bispo não é mais melhor do que nós».

Ele se incomoda quando se acumula algo em casa, logo o dá ao primeiro que chega.

Certa vez em que a Prelazia passava por apertos econômicos, e nem o salário dos agentes estava garantido para o próximo mês, lhe telefonou um empresário dizendo-lhe que o admirava e que queria fazer uma doação significativa para o seu trabalho pastoral. Serenamente Pedro respondeu: «envie esse dinheiro para a África, lá o povo precisa mais que nós aqui.» E talvez por essa generosidade nunca faltou à nossa Igreja o imprescindível.

Com convicção afirmo que poucas igrejas fizeram tanto trabalho com tão poucos meios, o que mostra que a falta de meios não é o maior problema na hora de evangelizar, quando há espírito evangélico e testemunho de vida. «Não levem nada para o caminho, nem sacola, nem bastão, nem sandália, nem duas túnicas.», diz Jesus no Evangelho de Lucas.

Durante muitos anos, não houve geladeira nem TV em casa. Pedro só aceitou estes bens quando a maioria do povo teve acesso a eles.
«Não ter nada, não matar nada, não calar nada.»
Com os pobres, contra a pobreza, pobreza como serviço e testemunho.

Sensibilidade e afeto à flor da pele

A sensibilidade abre espaços infinitos de luz e encanto, mas às vezes dói, nos deixa vulneráveis.

Pedro tem a sensibilidade e o afeto a flor da pele. «Estou pensando em alguém», pode dizer nalgum momento, e ao longo do dia receberá com certeza alguma notícia relacionada com essa pessoa distante. Telepatia?

Ele sabe que é um homem suscetível. Sofre muito com os conflitos pessoais dos que lhe são próximos, sobretudo se são conflitos de cunho afetivo. Quer resolver logo a situação, fica incomodado. Debate-se entre o desejo de ajudar e o respeito à intimidade alheia.

Uma das poucas vezes que tenho visto a Pedro doído, machucado, foi quando um agente da equipe pastoral disse que, diante de um conflito que ele vivera, não sentiu a proximidade de Pedro. Isso o abalou… «E dizer que eu não fui companheiro!», lamentava-se.

Agora, já na velhice, e ele gosta de ser chamado velho, Pedro é mais sereno, mais carinhoso, talvez menos ansioso, sempre atento ao que acontece ao seu redor.
«Humanizar a humanidade» foi o título de seu discurso ao receber o Prêmio Internacional de Catalunha, em 2006. Com o correr dos anos ele tem se permitido ser mais solto, mais corporal, seu abraço abraça mesmo, seu beijo humaniza.
Amante da beleza, ecologista antes de que esse termo estivesse na moda, ele escrevera:

«Plantei um jardim, cultivo flores,
pratico a beleza inutilmente
dou-lhes cada dia três ou quatro olhares protetores
e surpreendo à Criação que se refaz.»

Plantei um jardim, do livro «Tierra Nuestra, Libertad».

Depois de molhar todas as tardes as plantas de casa, às dezessete horas invariavelmente, toma banho. Sempre canta no chuveiro.

Pedro teimoso, Pedro corajoso

Outro dos traços da personalidade de Pedro é a coragem e a teimosia.

Amigos sertanejos, acostumados a enfrentar barras pesadas, dizem convictos: «Eta homem corajoso, Pedro é cabra macho», expressão nordestina para provar a coragem, a ousadia, o sem medo. E como o universo popular é cheio de lendas e fantasia, o povo perde os limites entre a realidade e a imaginação e às vezes se contam «causos» e «estórias» sobre a coragem de Pedro, que talvez nem tenham acontecido, mas que refletem a idéia que o povo tem dele.

Mas a história que vou contar, essa sim aconteceu.

Em 1972, a fazenda Bordon cercou o povoado de Serra Nova e começou a expulsar os posseiros e queimar seus barracos, servindo-se de pistoleiros que amedrontavam o povo. Pedro foi a Serra Nova para dar apoio aos lavradores. Estando lá, decidiu ir à sede da fazenda para falar com o gerente.

Benedito «Bocaquente», empregado da fazenda e com fama de valentão, sabendo que o bispo iria à sede, contratou um pistoleiro para matá-lo. Deu-lhe um revólver e dinheiro para a fuga. O pistoleiro ficou de tocaia na estrada. Pedro foi com Lulu, liderança dos posseiros, até a sede da fazenda. Passaram pelo pistoleiro que estava escondido na mata e ele não atirou. Quando chegaram na fazenda, o gerente ficou pálido, sem saber se eram gente viva ou gente do outro mundo, pois estava ao par da trama para mata-los.

O pistoleiro fugiu, mas antes declarou à equipe pastoral, que durante o tempo que ficou escondido na mata, ele lembrou que, de menino, sua mãe lhe dizia que quem matava um padre ia para o inferno. Ele, ao saber que ia matar um bispo, se assustou e desistiu da empreitada.

Histórias como esta deram a Pedro a fama de homem corajoso.

Firmeza inabalável ele tem, teimoso ele é e não é fácil fazê-lo mudar de opinião. É Pedro pedra, Pedro rocha. «Se diante das dificuldades, eu, que sou o bispo, me acovardo, em quem vai confiar o povo?». E lembra, brincando, uma das frases que ouviu há muitos anos: «Por que ter medo se há hospitais?».

Em outra ocasião, numa visita pastoral, ele, que ia na casa de todo mundo, também foi visitar o prefeito, velho amigo dele. A equipe pastoral estava crítica e reticente com as atitudes e incoerências do prefeito, e não considerava oportuna essa visita. Pedro foi questionado duramente pela equipe em público: «Você, Pedro, está errado», disse-lhe o padre da cidade. Pedro calou, mas ficou um ambiente pesado. No dia seguinte, ao iniciar os trabalhos, ele disse: «Agradeço a correção fraterna, a equipe tem todo o meu apoio e minha total confiança.» E como prova concreta disso, no dia seguinte presidiu a celebração da missa com o povo, tendo ao seu lado a equipe pastoral.

Pedro é determinado, obstinado, a palavra teimosia está grudada em sua pele.
Nos encontros da equipe pastoral, nos retiros espirituais, nos diálogos fraternos em casa à noite, quando Pedro ousa se expor e abre o coração, pede perdão «por suas impaciências». Quando Pedro quer uma coisa, a quer logo, para já, e move meio mundo para que os conflitos, sobretudo quando são problemas que ferem os pobres, se resolvam o mais rápido possível. Essa lerdeza dos governos e das cúrias, a má vontade dos burocratas, a indiferença distante das autoridades diante do sofrimento dos pequenos, o exasperam.

Leitor voraz, capacidade assombrosa de trabalho, andarilho sempre

São Félix do Araguaia, mesmo estando longe de tudo, é um dos lugares privilegiados para estar sempre bem informados, em contato com pessoas e grupos interessantes. Aqui se vive de forma concreta e permanente a experiência da solidariedade.

Pedro lê tudo e partilha tudo com quem está perto dele. Lê revistas, literatura, teologia. Grande comunicador e grande divulgador, antes escrevia cartas, agora escreve e-mails. «Que faz o senhor, agora que está aposentado?», lhe perguntou um amigo. «Escrevo mensagens», responde brincando. A correspondência dele, guardada no arquivo da Prelazia, será um prato cheio para os historiadores futuros.

Pedro acredita firmemente na orientação espiritual e no trabalho pastoral feitos através da correspondência pessoal e dos livros de espiritualidade. Certamente, isto é também um aspecto do carisma claretiano.

Com uma capacidade assombrosa de trabalho, Pedro, além de escrever livros e cartas, andou a pé, a cavalo ou de ônibus, anos a fio pelas estradas poeirentas do sertão. Não houve barraco ou lugarejo por onde ele não passara. Os moradores mais antigos da região sempre lembram de algum encontro pessoal com ele, de alguma palavra que os marcou. Ao mesmo tempo, Pedro lembrava e ainda lembra da vida e da história da maioria das famílias da região, conhece as pessoas pelo nome.
Não aprendeu a andar de bicicleta nem dirigir carro. Andarilho, caminhou léguas: «Como eu gostava de caminhar», diz frequentemente, agora que o Parkinson também limita suas caminhadas.

Pedro perfeccionista

Observador e detalhista, Pedro vê a realidade no seu conjunto e repara ao mesmo tempo nas mínimas coisas, se esmera em atenções e cuidados. «O senhor é extremamente detalhista», ouvi dizer a uma moça solidária que nos visitava. É verdade, está tão atento, por exemplo, à gata da casa prestes a parir como às trezentas famílias dos Sem-Terra acampadas na beira da estrada. Por tudo se interessa, de tudo se informa.

«Pedro é um perfeccionista», disse-me uma amiga comum. A intuição feminina não falha. Em tudo ele busca a perfeição, mas antes de exigi-la dos outros, exige-a a si mesmo.

Não suporta as coisas feitas pela metade, mediocridade é uma palavra que detesta.
Sempre em vigília, não se permite concessões, relaxa apenas nas horas da leitura, nos tempos de oração, nas «siestas» após o almoço e na hora de ver à noite as noticias na TV.

Quando algo lhe preocupa, fala o tempo todo e com todos sobre isso e não descansa até encontrar uma saída ou encaminhamento do problema. Assim é Pedro.

Homem de esperança militante

«Acima de tudo a esperança», é o que mais ouço Pedro dizer agora. «Caminhamos para vida, caminhamos para a Páscoa, estamos vivos ou ressuscitados», é isso o que ele afirma, é isso o que agora mais repete, é nisso que ele acredita. E insiste constantemente para que sejamos homens e mulheres esperançados e semeadores dessa esperança que é fé na vida e no futuro da humanidade. «Apesar dos muitos conflitos, a humanidade não é suicida, há sempre um caminho, uma saída», ele diz. É, sobretudo, um homem de esperança militante.

Pedro faz parte daquela geração de bispos latino-americanos nomeados por João XXIII e Paulo VI, que foram os Santos Padres da Igreja Latino-americana, homens extraordinariamente humanos, intelectualmente cultos, pastores próximos do povo, espiritualmente maduros, profetas engajados na realidade do nosso continente. Eles traduziram as orientações do Concílio Vaticano II para a realidade da América Latina.

Na II Conferência Episcopal em Medellín, Colômbia (1968), fizeram a opção pelos pobres e assumiram a causa da justiça. Ajudaram, dessa forma, a dar um novo rosto a esta nossa Igreja, e despertaram a esperança no povo oprimido.

As pessoas que chegam a São Félix do Araguaia, sobretudo as que vêm da Europa ou do «primeiro mundo» suplicam: «dai-nos um pouco de esperança porque, na sociedade em que vivemos, ela morreu.» De fato, é verdade que, a pesar de nossa pobreza, aqui o povo sonha e quer construir o futuro e, a pesar dos muitos sofrimentos, existe alegria e esperança. E essa troca solidária nos enriquece a todos.

Para terminar

Há tempo, Pedro quer sair de cena. Se resiste a dar entrevistas que falem de si mesmo. «O que tinha para dizer, já disse, não quero me repetir», ele argumenta. «Esqueçam de mim e olhem para as causas que dão sentido à minha vida, elas permanecem, a gente passa, as causas continuam.»

Vinte e sete anos atrás cheguei a São Félix do Araguaia, atraído como tantos e tantas pelas opções desta Igreja e pelo carisma irresistível do Pedro. Se, no começo, a relação foi com o mito, o convívio diário possibilitou quebrar o mito e construir a relação fraterna, igual, amiga. Hoje sei que sou privilegiado vivendo nesta Igreja e partilhando o dia-a-dia nesta casa onde tudo é símbolo, referência, compromisso.

Em maio de 1986, eu ia com Pedro e outros companheiros para uma reunião da CPT que teria lugar em Miracema do Norte, no estado do Tocantins. Na estrada, ficamos sabendo que o Pe. Josimo Moraes Tavares, que também ia para essa reunião, acabava de ser assassinado em Imperatriz, a mando dos latifundiários da região do Bico do Papagaio, onde ele trabalhava.

Nessa angustia, percorremos o resto do caminho, e nesse contexto, pensando em Pedro, ali ao meu lado, e tantas vezes ameaçado de morte, e evocando a memória do companheiro Josimo, escrevi o poema:

Amigo

Meus olhos viram tantas vezes
as mesmas coisas que os seus:
água
mata
estrelas
a beleza repartindo-se entre o dia e a noite
a morte
a pobreza.

Vibrou meu coração junto com o seu
redescobrindo o mundo pelo avesso.
Sentimos juntos a raiva queimando em nosso peito
impotentes frente à tortura
o fusil
a prepotência.
Seguiram meus pés seu caminhar
e prosseguem agora abrindo o caminho incerto.
Juntos fizemos poemas nunca escritos
e já nem sabemos quais os seus e os meus versos.
Aprendemos a amar o mesmo povo
e ele abençoou-nos com o mesmo beijo.
Tivemos sonhos comuns
e comuns são nossos mortos.

Do livro «Utopia».

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Autor

José Manuel Vidal

Periodista y teólogo, es conocido por su labor de información sobre la Iglesia Católica. Dirige Religión Digital.

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