Anselmo Borges

Utopias, distopias, retrotopia

"São crítica da situação presente e, por outro, impulso para transformá-lo"

Utopias, distopias, retrotopia
Anselmo Borges

Também participou no Folio Salman Rushdie, com quem dialoguei da primeira vez que veio a Portugal, em 2006, sobre "O Deus do Mediterrâneo"

(Anselmo Borges en DN).- Coube-me a honra de um convite para participar no magno evento cultural Folio, na bela Óbidos, com uma fala sobre utopias e distopias, a que acrescentei retrotopia, pelas razões que direi.

1. Foi Thomas More que cunhou o termo utopia, com a publicação, há 500 anos, de A Utopia, cujo título em latim é mais longo: De Optimo Reipublicae Statu Deque Nova Insula Utopia (sobre o melhor estado de uma República e sobre a nova ilha da Utopia). Ele sabia do que falava, concretamente do poder, pois foi chanceler. A Igreja canonizou-o em 1935. A Utopia é uma ilha imaginada lá longe no oceano (utopia tem o seu étimo no grego: ou, que se lê u, que significa não) e tópos, com o significado de lugar. Portanto, Utopia é um não lugar; de qualquer forma, um ideal que indica o caminho.

A utopia supõe a distopia (também do grego: dys, que significa mau, duro: portanto, um mau lugar, o oposto a utopia). Assim, na primeira parte, More critica os males que atravessavam a sociedade inglesa, do despotismo e venalidade dos cargos públicos à sede de luxo por parte dos privilegiados e à injustiça e opressão que provocam. Na segunda parte, descreve uma sociedade ideal, que imaginariamente já se encontra realizada na ilha da Utopia. Neste sentido, embora haja vários tipos de utopias, a utopia nasce como eutopia (mais uma vez, do grego: eu – bom, feliz, e tópos, um lugar bom e felicitante, como na palavra Evangelho: eu+angelion, notícia boa, feliz, felicitante).

2. Com Thomas More encontramo-nos no Renascimento e na dinâmica do Humanismo. A sua Utopia deriva também, de algum modo, da secularização do messianismo, do Reino de Deus e sobretudo da escatologia. Se, na perspectiva cristã, o Reino de Deus será consumado na meta-história, agora, com as utopias, pretende-se realizá-lo já neste mundo, na nossa história, na imanência terrena. Por outro lado, se, em certos casos, eventualmente, a ideia utópica nasceu do sonho de levar adiante o que aconteceria se não tivesse havido pecado original – neste quadro o Reino de Deus já estava no princípio e não no fim -, o que é facto é que as utopias começaram por ser espaciais (A Utopia de More é uma ilha), mas, sobretudo por causa dos desenvolvimentos da técnica e da nova consciência histórica, passaram a ter uma dinâmica mais temporal: a utopia não está ainda imaginariamente realizada num lugar, mas tem o seu tópos no «ainda não» do futuro.

As utopias têm duas funções fundamentais : por um lado, são crítica da situação presente e, por outro, impulso para transformá-lo, olhando para um futuro outro, numa sociedade livre e justa, de bem-estar para todos. Parte-se do princípio de que o ser humano é constitutivamente utópico, porque é um ser desejante e esperante, que aspira à felicidade. Por outro lado, se a utopia não há-de cair no mero escapismo, na ilusão ou no wishful thinking, é necessário estudar as possibilidades de transformação da realidade. A utopia é constituinte do ser humano, porque ele deseja mais e melhor, a perfeição, e, por outro, há condições objectivas na realidade para a concretização do desejo. É toda a dinâmica entre «o que é» de facto e o que «pode e deve ser».

Há perigos reais nas utopias. Eles têm que ver concretamente com a «geometrização» da sociedade utópica, de tal modo que se cai na distopia da ditadura, esquecendo o indivíduo e a pessoa. Quando, por exemplo, o socialismo de utópico passou a científico e se implantou como «socialismo real» foi a tragédia que se sabe. Agora, está aí a utopia, a caminho de realizar-se, do transhumanismo e mesmo do pós-humanismo, na busca de uma nova espécie e da imortalidade, a partir do cruzamento das NBIC (nanotecnologias, biotecnologias, informática, inteligência artificial, ciências cognitivas). Projecto grandioso, mas é necessário ter consciência dos perigos e intervir política e eticamente. Que queremos verdadeiramente?

3. Significativamente, se esta utopia sobretudo técnica, que inclui a Uberlândia, goza de fascínio, no nível social e político reina mais o pessimismo e, assim, o sociólogo famoso Zygmunt Bauman perguntou recentemente ao jornalista da Der Spiegel (3-9-2016): «Já ouviu falar do conceito de retrotopia?» «Será o título do meu próximo livro.» Hoje, é «a desilusão» face ao futuro: «Vivemos catástrofe após catástrofe: terrorismo, crise financeira, estagnação da economia, desemprego, precariedade…, desconfiança, cada um é para o outro um potencial opositor e concorrente», os perigos são omnipresentes. «Por isso, voltamo-nos para o passado e, no entanto, movemo-nos de modo cego para diante.» «É notável que precisamente o Papa Francisco clame expressamente por uma cultura do diálogo. Só ela nos possibilitará perceber e respeitar o outro como parceiro legítimo.»

4. Também participou no Folio Salman Rushdie, com quem dialoguei da primeira vez que veio a Portugal, em 2006, sobre «O Deus do Mediterrâneo». Ele veio relembrar como as religiões institucionais podem ser e são tantas vezes distópicas. Como eu o compreendo! Mas estou convicto de que Deus não desaparecerá da vida da humanidade. Ele continuará presente, em primeiro lugar, na pergunta por Ele. Porque o ser humano é constitutivamente utópico e esperante. E só Deus pode preencher e dar Sentido último, por graça, ao seu desejo e esperança infinitos.

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Autor

José Manuel Vidal

Periodista y teólogo, es conocido por su labor de información sobre la Iglesia Católica. Dirige Religión Digital.

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