Anselmo Borges

Sobre Saramago e Deus

"Foi com dois ateus que aprendi do melhor da Teologia: Ernst Bloch e o nosso homenageado, José Saramago"

Sobre Saramago e Deus
Anselmo Borges

Segundo Saramago, "Deus é o silêncio do universo, e o ser humano o grito que dá sentido a esse silêncio"

(Anselmo Borges, padre e professor de Filosofia).-  O Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra e a Câmara Municipal de Coimbra organizaram nos passados dias 8, 9 e 10 de Outubro, no Convento de São Francisco de Coimbra, um Congresso Internacional: «José Saramago: 20 anos com o Prémio Nobel». Carlos Reis e Ana Peixinho pediram-me uma intervenção sobre Saramago e Deus. O que aí fica é uma breve síntese da minha fala nesse Congresso.

1. Numa entrevista dada a João Céu e Silva, uma das últimas, se não a última, Saramago referiu-se-me com admiração por ter lido e gostado do seu livro Caim. «Até fiquei surpreendido quando ouvi um teólogo – uma coisa é um teólogo e outra um padre – Anselmo Borges, dizer que tinha gostado do livro». Mas na Net também se diz, e é verdade, que fui crítico por causa de alguma unilateralidade com que Saramago leu a Bíblia. Assim, a minha intervenção quer ser essencialmente um esclarecimento sobre essa minha dupla visão.

2. Saramago foi à Academia Sueca dizer, no dia 7 de Dezembro de 1998, logo na primeira frase: «O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever».

Quando me expresso sobre o diálogo inter-religioso, digo sempre, com escândalo de alguns, que desse diálogo também fazem parte os ateus, os ateus que sabem o que isso quer dizer – os crentes também só o são verdadeiramente, se souberem o que isso quer dizer. Fazem parte, porque são eles que, estando de fora, mais facilmente vêem as superstições, as inumanidades e até as barbaridades que tantas vezes infectam as religiões.

Assim, à maneira de Saramago, também digo: foi com dois ateus que aprendi do melhor da Teologia: Ernst Bloch e o nosso homenageado, José Saramago. Mais com Bloch, porque, dada a situação da Teologia na Universidade alemã – em todas as Universidades, há duas Faculdades de Teologia, uma católica e outra protestante -, ele tinha profundos conhecimentos bíblicos. Neste enquadramento, refiro três pontos.

2. 1. Também sou ateu em relação ao deus denunciado por eles. Porque é isso que se deve ser, se se quiser manter a dignidade humana face a um deus brutal, irresponsável, ciumento, mesquinho, tirânico, cruel, sádico, sanguinário… Neste sentido, estou de acordo com Ernest Bloch , quando escreveu que «só um bom ateu pode ser um bom cristão, só um bom cristão pode ser um bom ateu».

Previno que a boa exegese mostra que nem sempre está no texto bíblico aquilo que o puseram a dizer e que passou à tradição. Por exemplo, o caso de Isaac, cujo significado é o contrário daquilo que frequentemente se ensinou: ao aparecer o cordeiro, Deus está a proclamar que não quer o sacrifício de seres humanos. Mas, de facto, muitas vezes foi a outra tradição que passou, aquela a que se referiu o prestigiado biblista católico do século XX, Norbert Lohfink, quando constatou que a Bíblia judaica é «um dos livros mais cheios de sangue da literatura mundial».

Como aceitar um deus que castigasse a Humanidade inteira por causa de os primeiros pais terem comido uma maçã? De qualquer modo, no quadro da evolução, quem foram os primeiros e como é que poderiam ter um acto de liberdade tal que arrastasse consigo todos os males do mundo, incluindo a morte? Que sentido pode ter um pecado original herdado, de tal modo que todas as crianças seriam geradas em pecado, do qual só o baptismo pode libertar?

E Jesus não foi enviado por Deus para ser morto e com a sua morte pagar a dívida infinita da Humanidade para com Deus e Deus aplacar a sua ira e reconciliar-se com a Humanidade. Que pai decente imporia isso ao seu filho querido, condenando-o à morte?

Caim, segundo Saramago, vai, castigado, pelo mundo, não sem perguntar a deus porque é que o não impediu de matar o irmão, Abel. Deus é, pois, co-responsável por esse acto…

Trata-se de um deus arbitrário, irresponsável, ciumento, pior do que nós.

Ficamos arrepiados, quando lemos que Deus exigiu de Abraão que matasse o seu filho Isaac. O próprio filósofo Sören Kierkegaard, que propunha Abraão como modelo da fé incondicional, viu o horror da situação e diz que o miúdo voltou para casa e deixou de acreditar em deus e Abraão nunca disse uma palavra a Sara sobre o acontecido.
Sodoma e Gomorra. Lá também havia crianças inocentes. E deus não se lembrou delas?

Babel. Deus, em vez de castigar os homens pelo seu feito, deveria honrar-se com o êxito das suas criaturas. É ciumento, invejoso.
Também no Dilúvio, deus não teve compaixão para com os inocentes. A mesma acusação vale para a situação dos filhos primogénitos dos egípcios.

Ah, e, aquando do nascimento de Jesus, houve a matança dos inocentes e José não se preocupou. No regresso do Egipto nem sequer perguntou às mães pela sua dor…

Do pior: as guerras religiosas, pois é deus contra deus, e as vítimas são os homens e as mulheres e as crianças… Como é possível deus mandar matar, haver guerras em nome de deus?

2. 2. Ernst Bloch foi mais longe. Sabendo Teologia e exegese, distinguiu muito bem duas camadas na Bíblia: a do deus dos senhores, do deus dominador, tirânico, imoral e opressor e a do Deus da libertação e dignificação de todos. Em conexão, viu também dois tipos de Igreja: a Igreja dos senhores, a Igreja do poder inquisitorial, opressora, e a Igreja dos pobres, do bem, da justiça, da paz. Para Bloch, há um duplo fio condutor na Bíblia: o sacerdotal, em que domina o deus opressor, dos senhores, e o profético-messiânico-apocalíptico, que anuncia o Reino de Deus, a herdar meta-religiosamente como Reino do Homem: «Esta vida no horizonte do futuro veio ao mundo pela Bíblia.»

Jesus agiu como um homem bom, escreve Bloch, «algo que ainda não tinha acontecido». Ele personifica a bondade e o amor e nele exprime-se e realiza-se o melhor da esperança, o ainda não do que a Humanidade pode e deve ser. Ele não foi morto por Deus seu Pai, mas pelo religião do Templo, a religião dos sacerdotes, que viviam da exploração dos crentes.

O que devemos ao cristianismo? O próprio conceito de pessoa foi dentro dos debates à volta da tentativa de compreender Jesus Cristo que surgiu. Sabemos que nenhum homem pode ser «tratado como gado»: foi através de Jesus que o sabemos, porque nele, por ele e com ele, se proclama a dignidade infinita de todo o ser humano.

Onde é que nasceu a Declaração dos Direitos Humanos? Foi na China? Na Arábia?
Jürgen Habermas, o filósofo mais influente da actualidade, agnóstico, escreveu que a democracia não é senão a tradução para a política da ideia cristã de que cada homem e cada mulher são filhos de Deus. Isso, politicamente traduzido, dá um homem um voto, uma mulher um voto.

Não haveria o horror da pedofilia, também na Igreja, se se ouvisse a maior proclamação de sempre feita por Jesus sobre a dignidade das crianças: «Deixai vir a mim as criancinhas, porque delas é o Reino de Deus», acrescentando logo a seguir: «Ai de quem escandalizar uma criança: mais valia atar-lhe uma mó de moinho ao pescoço e ser lançado ao mar».

Tudo isto para repetir o que disse logo no início da minha fala: estou grato, muito grato, a Saramago, mas não aceito a sua afirmação: «A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele». A sua leitura foi unilateral.

3. O que é ser ateu? Quando se diz que se é ateu, é preciso começar por perguntar o que se entende por isso e concretamente em relação a que Deus se é ateu.
Há dois modos de negação de Deus: a negação real e a negação determinada.
Por negação determinada entende-se a negação de um determinado deus, de uma certa imagem de deus. Foi o que Saramago fez.

Como podia ele ou alguém intelectualmente honesto aceitar um deus cruel e sanguinário? Daí a inversão da oração de Cristo na Cruz, no Evangelho segundo Jesus Cristo. Onde no Evangelho se diz: «Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem», lê-se em Saramago: «Homens, perdoai-lhe porque ele não sabe o que fez».

A negação determinada não significa negação real. A pergunta é, portanto, se Saramago negou realmente Deus ou se, pelo contrário, na negação do deus arbitrário e sanguinário, não está dialecticamente presente o clamor pelo único Deus verdadeiro, o do amor incondicional, o do Anti-mal.

De qualquer modo, segundo Saramago, «Deus é o silêncio do universo, e o ser humano o grito que dá sentido a esse silêncio». «Esta definição de Saramago é a mais bela que alguma vez li ou ouvi», escreveu o teólogo Juan José Tamayo. «Essa definição está mais perto de um místico do que de um ateu».

4. No final da minha intervenção, a viúva de Saramago, Pilar del Río, aproximou-se, agradeceu e disse-me: Sabe qual foi o contexto desse diálogo entre o meu marido e Tamayo? Íamos os três pela Plaza de la Giralda, em Sevilha, e os sinos da catedral repicaram, e Saramago: «Os sinos tocam porque está um teólogo a passar». E Tamayo retorquiu: «Não, os sinos repicam porque um ateu está prestes a converter-se ao cristianismo».

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Autor

José Manuel Vidal

Periodista y teólogo, es conocido por su labor de información sobre la Iglesia Católica. Dirige Religión Digital.

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