O Papa Francisco beija, conforta, anuncia sem cessar, por palavras e obras, que Deus é amor e misericórdia e que perdoa sempre
(Anselmo Borges, en DN).- 1. Num belo livro, Cartas a Francisco, escreve também um destacado filósofo e teólogo, L. González-Carvajal, que, na sua carta, resume a parábola de J. Bouchaud para exprimir a impressão causada por João XXIII, aplicada agora ao Papa Francisco:
«Havia uma vez um barco, um velho e belo barco que há muito tempo estava ancorado no porto. A vida a bordo era de prerrogativa. Os oficiais estavam ataviados com uniformes de diferentes cores – o negro para os de mais baixa graduação, violáceo, vermelho e púrpura para os outros -, a que alguns tinham juntado adornos (capas, arminhos, condecorações…). As relações entre os comandos superiores e os subalternos regiam–se por um cerimonial carregado de requintados ritos e reverências. Na realidade, a vida a bordo era fácil, porque tudo o que havia para fazer ou deixar de fazer estava determinado por um regulamento muito preciso que todos observavam escrupulosamente.
Como é lógico, no barco havia também marinheiros, embora dificilmente fossem vistos. Trabalhavam no porão e na sala das máquinas, apesar de o trabalho com os motores não ser muito importante num navio que nunca deixa o porto.
As veneráveis senhoras que passeavam pelo cais diziam umas às outras: «Este barco é o meu preferido; é um barco fidelíssimo, nunca se move do seu sítio».
Um dia, o comandante reformou-se e, cumprindo o regulamento de regime interno, os oficiais de uniforme púrpura reuniram-se para nomear um novo comandante. Elegeram um deles, já de idade avançada, que, com certa dificuldade, subiu a escada que leva ao posto de comando. E de repente ouviu-se ele a dizer algo que deixou a todos petrificados: «Levantai âncoras, rumo ao mar!». Um dos oficiais atreveu-se a perguntar: «Ouvimos bem? Poderia repetir…» E o comandante repetiu com voz forte e clara: «Já disse: rumo ao alto mar!».
Entre os oficiais estendeu-se um murmúrio que acabou por transformar-se em clamor: «Ele está completamente louco, o barco vai afundar-se!» Pelo contrário, muitos marinheiros ficaram contentes, ao verem que acabava a monotonia.
Quando a terra desapareceu da vista, desencadeou-se uma tempestade e então todos compreenderam que o regulamento vigente no porto não servia para o alto-mar. Alguns gritavam, mortos de medo: «Voltemos para o porto, pois afundamo-nos.» Mas, ao fim e ao cabo, os barcos foram feitos para navegar. E o regulamento começou a mudar.»
2. Impressiona como é que Francisco, com pulmão e meio, ciática, e 81 anos, mantém a energia para levar por diante a renovação da Igreja a favor da humanidade. Quando naquele 13 de Março de 2013 – há cinco anos – apareceu à multidão simples desejando «buona sera», inclinando-se e pedindo a bênção aos fiéis, referindo-se a si mesmo apenas como bispo de Roma, intuiu–se que a ordem agora era: «Rumo ao alto-mar!».
Depois, a intuição foi-se confirmando. Ficou na Casa de Santa Marta. Um carro modesto e uns sapatos normais pretos, de alguém que não pisa salões de senhores, mas os caminhos das pessoas, sobretudo das mais débeis e necessitadas. Passados dias, abraçou com força aquele homem de rosto completamente desfigurado (sofre da doença de Von Recklinhausen). Beija, conforta, anuncia sem cessar, por palavras e obras, que Deus é amor e misericórdia e que perdoa sempre – logo o acusaram de que agora vale tudo, esquecendo que o amor é tremendamente exigente e que ele próprio sabe que a vida não é fácil e dá disso testemunho numa vida imensamente austera e sacrificada. Pela humildade, cordialidade, serviço, conquistou a simpatia de crentes e não crentes. Não se considera infalível, dá risadas, telefona a este e àquela. Quando é preciso, vai a um mictório público.
Um Papa cristão, apaixonado pelo Evangelho, notícia boa e felicitante! «A Igreja somos nós todos» ao serviço de todos. O clericalismo e o carreirismo são «a peste da Igreja». Impõe-se reformar a fundo a Cúria Romana. Não podemos ficar «mumificados nas nossas estruturas». Para a pedofilia, tolerância zero – se se equivoca, como aconteceu no Chile, vai emendar o erro. Transparência total no Banco do Vaticano. É preciso descentralizar a Igreja. Os leigos «não são funcionários do clero». As mulheres têm de ocupar o seu lugar nos postos cimeiros de decisão, contra o machismo. Acabaram as condenações de teólogos. «O celibato dos padres não é um dogma.» É preciso continuar e aprofundar o diálogo com as outras Igrejas cristãs e também o diálogo inter-religioso.
Líder político-moral global, dos mais influentes e amados, se não o mais influente e amado – 45 milhões de seguidores no Twitter -, Francisco denuncia a financeirização especulativa da economia, «que mata». Sim à economia de mercado, mas social e ecológica de mercado, com acento no social e ecológica. O seu combate a favor da paz não tem tréguas. A sua leitura da Igreja e do mundo é a partir das periferias e o seu modelo é o poliedro.
3. Na síntese de franciscano por opção e de jesuíta por formação, Francisco pôs a Igreja em marcha, sem ser possível voltar atrás. Os opositores vêm sobretudo de cima e de dentro, porque não querem sair dos seus privilégios e instalação dogmática, esquecendo a vida. Já Jesus tinha sido vítima dos instalados na religião, com os seus privilégios.
Disse que não sai a pontapé. Mas, quando já não puder, resignará e penso que não ficará no Vaticano, não há lugar para a figura de «Papa emérito», será «bispo emérito de Roma». E, a seguir, do que a Igreja e o mundo precisam é de um João XXIV, na continuação de Francisco e João XXIII, o «Papa bom», que na noite da abertura do Concílio Vaticano II observou à multidão que nem à Lua o acontecimento passara indiferente e pediu aos pais que levassem um beijo do Papa para os filhos.