"O diabo não faz parte do Credo cristão"

O diabo e os exorcismos

"O diabo não pode ser apresentado como uma espécie de concorrente de Deus, um anti-Deus"

O diabo e os exorcismos
Ritual del exorcismo

Assim, como escreveu o filósofo da religião Manuel Fraijó, "deveriam cessar as delirantes cerimónias de exorcismos"

(Anselmo Borges).- Fico a saber através de Jesús Bastante que, segundo a Associação Internacional de Exorcistas, há um «auge» das possessões demoníacas, centenas de milhares em todo o mundo, embora o próprio Vaticano tenha advertido que desses «endemoninhados» só uns 2% a 3% o eram realmente. São poucos os padres que se sentem com vocação para exorcistas; aliás, para «expulsar o demónio», têm de ter uma autorização especial do bispo.

Em face da escassez de exorcistas, «a Santa Sé está a organizar cursos para treinar mais sacerdotes». «Por estranho que possa parecer, a preocupação com o demónio aumentou nas fileiras católicas, e o próprio Papa Francisco fala frequentemente das influências de Satanás, como mostra a maldade no mundo, o auge das guerras e do ódio», tendo inclusive «recomendado aos sacerdotes que recorram aos serviços de um exorcista caso sintam alguma actividade demoníaca contrária. No entanto, pediu precaução na situação de determinar se uma pessoa sofre influências demoníacas ou transtornos mentais».

Um facto: instado por um padre que lhe apresentou alguém alegadamente possuído – «Santidade, esta pessoa precisa da sua bênção. Viram-no dez exorcistas, fizeram-lhe mais de 30 exorcismos e os demónios que leva dentro não querem sair» -, Francisco saudou esse homem, que lhe beijou o anel e caiu em transe, mas o Papa não se deixou impressionar e continuou com a sua oração. Depois, «o Vaticano desmentiu que Francisco tivesse realizado um exorcismo, embora tenha rezado junto dessa pessoa». Na exortação «Gaudete et exsultate», desta semana, diz que o diabo é «um ser pessoal» e «não um mito, um símbolo ou uma ideia».

2 O diabo tem múltiplos nomes: Demónio, Satanás, Belzebu, o Maligno, Lúcifer, Mafarrico, Satã… Há quem diga que o viu… O padre G. Amorth, o exorcista do Vaticano, que fez uns 70 mil exorcismos, chegou a dizer que ele andava à solta no Vaticano e denunciou seitas satânicas instaladas na Cúria e servidas por membros da Igreja, incluindo «monsenhores e até cardeais» (ele lá saberia do que falava…).

Esteve há anos em Lisboa o mais célebre exorcista espanhol, padre J. A. Fortea, que confessou ter apanhado, numa sessão de exorcismo, uma dentada no pescoço, que, felizmente, desapareceu horas mais tarde: «Fazer uma conferência com uma dentada no pescoço, por cima do cabeção, teria sido embaraçoso.» O diabo enriqueceu enormemente a escultura e sobretudo a pintura… Lembro-me particularmente de dois: um, a defecar lá do alto, na Catedral de Friburgo (Alemanha); o outro, na Catedral de Basileia, a seduzir uma mulher, que sorri no enlevo da tentação…

O que é terrível é o mal no mundo e o seu horror: sofrimento de toda a ordem, traições, genocídios, torturas, doenças esmagadoras… Donde vem tanto mal, se Deus é infinitamente poderoso e bom? Concretamente, porque é que a vontade humana não é sempre boa? O diabo, aparentemente, poderia explicar. Ele tentou e tenta o ser humano, que cai na tentação, provocando o mal. Mas já I. Kant pôs na boca de um catequizando iroquês a pergunta: porque é que Deus não acabou com o diabo? E, sobretudo, quem tentou os anjos, para que, de bons, se transformassem em demónios? O diabo não explica nada. O mal é inevitável por causa da finitude.

Já em 1969, o famoso exegeta H. Haag escreveu uma obra justamente célebre, Abschied vom Teufel (Adeus ao Diabo), mostrando que não há qualquer fundamento para a crença no demónio. Outro grande teólogo, H. Bietenhard, escreveu: «As pregações sobre o diabo e sobre o inferno, quando não fomentam a necessidade de emoções de pessoas pseudopiedosas e a excitação dos seus nervos, só servem para difundir a insegurança, a angústia e o medo.» No contexto das crenças do seu tempo, Jesus ajudou as pessoas que sofriam de todo o tipo de doenças, também das que atribuíam ao demónio e que hoje sabemos serem do foro psiquiátrico. As pessoas continuam, hoje, a pedir auxílio e, numa «coligação» de pastoral, medicina geral e psiquiatria, é obrigação de todos ajudá-las, como Jesus fez.

De qualquer forma, Jesus anunciou Deus e não Satanás. O diabo não faz parte do Credo cristão – aliás, que sentido poderia ter acreditar no diabo como se diz acreditar em Deus: acreditar, fé enquanto entrega confiada (a Deus, e ao diabo também?). O núcleo da mensagem de Jesus foi o Reino de Deus, e o Reino de Deus consiste na salvação plena e total das pessoas. Neste sentido, o diabo pode aparecer como símbolo personificado de toda a negatividade, de todo o mal que aflige a humanidade, mas a que Deus há-de pôr termo, segundo a promessa de Jesus. O diabo surge como expressão do que não é o Reino de Deus, aparece como o contrário do Reino. Precisamente para realçar mais o que constitui o centro da mensagem de Jesus: o futuro do seu Reino.

O diabo não pode ser apresentado como uma espécie de concorrente de Deus, um anti-Deus. E não tem sentido continuar a pensar e a pregar que ele se mete no corpo das pessoas, para tomar posse delas. Não há possessões demoníacas. O que há são doenças e doentes de muitas espécies e com múltiplas origens. Assim, como escreveu o filósofo da religião Manuel Fraijó, «deveriam cessar as delirantes cerimónias de exorcismos». Por outro lado, se Jesus não pregou Satanás, mas Deus, então a fé dos cristãos dirige-se a Deus e não ao diabo, o que implica e exige, na prática, expulsar da vida pessoal e pública – «exorcizar» – tudo o que é demoníaco, diabólico, satânico, infernal.

Para esta tarefa ingente não há «exorcistas» suficientes, todos temos de assumir essa missão, abandonando os demónios inexistentes e preocupando–nos com os outros, os que na realidade existem, que andam por aí à solta e provocam sofrimentos incomensuráveis, porque são contra o Reino de Deus: o orgulho, a vaidade, a ganância, a injustiça, a corrupção, a hipocrisia, a ignorância, a falta de solidariedade…

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Autor

José Manuel Vidal

Periodista y teólogo, es conocido por su labor de información sobre la Iglesia Católica. Dirige Religión Digital.

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