Estou convicto de que o Papa emérito não quer ser obstáculo para o exercício do ministério de Francisco
(Anselmo Borges).- 1. Há quem suspeite que o Papa emérito, Bento XVI, possa ser um dos centros de oposição ao Papa Francisco. E apresentam razões para essa suspeita. Há quem pergunte porque é que continuou no Vaticano. Mais grave será, ainda no exercício das suas funções, ter feito arcebispo o seu secretário, Georg Gänswein, que nomeou, ao mesmo tempo, para Prefeito da Casa Pontifícia, garantindo assim que ficaria permanentemente informado do que faz o seu sucessor.
Em 1972, ainda professor, escreveu um ensaio académico, manifestando abertura à admissão à Eucaristia dos divorciados recasados, no caso de a nova união ser sólida, haver obrigações morais para com os filhos, não subsistindo obrigações do mesmo tipo em relação ao primeiro casamento, «quando, portanto, por razões de natureza moral é inadmissível renunciar ao segundo casamento». Ora, este ensaio foi retirado das «Obras Completas» de Ratzinger, cuja edição está a cargo do cardeal G. Müller, um dos opositores a Francisco, concretamente nesta questão. E, recentemente, Gänswein veio dizer que Bento XVI não abandonou o ministério de Pedro, antes fez dele «um ministério expandido, com um membro activo e um membro contemplativo», numa «dimensão colegial e sinodal, quase um ministério em comum».
2. Não acredito nesta tese. Estou convicto de que o Papa emérito não quer ser obstáculo para o exercício do ministério de Francisco. Uma prova: julgo que, segundo as regras académicas, o texto sobre a comunhão deveria ser publicado na íntegra, com uma eventual nota a explicar que presentemente não pensa do mesmo modo, mas faço notar que, quando alguns cardeais quiseram tê-lo do seu lado contra Francisco, Bento XVI fez-lhes ver que o Papa «agora» é Francisco.
Francisco escreveu o prefácio do volume mais recente das «Obras Completas», onde se pode ler: «Quando leio as obras de Joseph Ratzinger/Bento XVI, torna-se para mim cada vez mais claro que fez e faz «teologia de joelhos»: de joelhos porque, antes até de ser um grandíssimo teólogo e mestre da fé, vê-se que é um homem que crê verdadeiramente, que reza verdadeiramente; vê-se que é um homem que personifica a santidade, um homem de paz, um homem de Deus.» Segundo Francisco, «ao renunciar ao exercício activo do ministério petrino, Bento XVI decidiu dedicar-se totalmente ao serviço da oração».
As palavras de Gänswein foram recordadas por uma jornalista, no regresso da Arménia, perguntando: «Há dois Papas?». Francisco respondeu, dizendo que não esquece o discurso de Bento XVI aos cardeais antes do conclave: «Entre vós é seguro que está o meu sucessor. Prometo obediência», e cumpriu. E também lembrou que, quando alguns foram «lamentar-se por causa do novo Papa», «afugentou-os, com o seu melhor estilo bávaro, educado, mas afugentou-os».
Numa recente entrevista, que aparecerá, em Setembro, como livro, «Últimas Conversas», Bento XVI revelou a existência de um «lobby gay» no Vaticano, que dissolveu; admite a sua «falta de decisão» de governo, mas que lutou a favor de uma Igreja limpa; negou qualquer «chantagem ou pressão» para que renunciasse. Sobre Francisco, confessou a «surpresa» que constituiu a sua eleição, mas a surpresa transformou-se em «alegria», depois de ter visto pela televisão como o novo Papa rezava e pedia a bênção do povo. Trata-se de «um homem que, na véspera do conclave, não esperava. São duas figuras distintas, dois modos diferentes de entender o Papado», mas sublinha a sua «figura humana e papal».
3. Bento XVI ficará na história e fez história ao renunciar. Foi um estrondo na Igreja e no mundo, como se dissesse: é demasiada a podridão na Igreja, vou-me embora, porque ela precisa de sangue novo na sua condução.
E apareceu Francisco que, fazendo a síntese de franciscano e jesuíta, prepara, com a simplicidade da pomba e a prudência da serpente, a Igreja para o século XXI: uma Igreja pobre para os pobres, que combate a favor da justiça e da paz num mundo globalizado, desclericalizada, sinodal, onde os leigos e, concretamente, as mulheres tenham o seu lugar, uma Igreja que não tem medo da razão crítica, sem triunfalismos nem intolerâncias, respeitadora da consciência, ecuménica, dialogante, ao serviço do Evangelho e das pessoas, que antepõe à doutrina.
4. E os inimigos? Numa entrevista recente, perguntou-lhe uma jornalista: «Como se arranja com os ultraconservadores da Igreja?». Respondeu: «Eles fazem o trabalho deles e eu faço o meu. Eu quero uma Igreja aberta, compreensiva, que acompanhe as famílias feridas. Eles dizem que não a tudo. Eu continuo o meu caminho, sem olhar para trás. Não corto cabeças. Nunca gostei de fazê-lo. Repito: rejeito o conflito«. E concluiu com um sorriso aberto: «Os pregos tiram-se puxando para cima. Ou colocamo-los a descansar, ao lado, quando chega a idade da reforma».